A pauta comovente levou quase uma década para chegar ao jornal O Público, de Portugal. Compartilhada pela jornalista Thais Braga – que morou lá – com meu amigo Marcelo Abreu, de Brasília, acabou na minha caixa de e-mail aqui em São Paulo bem na hora do almoço, quando o perfume do lombo de bacalhau português invadia a casa. Sincronicidade? Sei lá, mas deu ânimo de retomar o blog abandonado. O bacalhau teve que esperar…
O estranho caso ocorreu logo em Portugal, referência em estudos e pesquisas sobre gerontologia, e no atendimento aos idosos, com suas residências modelo, que em nada lembram asilos.
Para entender melhor, a aposentadoria em Portugal é chamada de Reforma. Quem é reformado, vive de aposentadoria, bem melhor que a brasileira. Com o envelhecimento da população e número significativo de idosos sem família, mas com a renda da Reforma, o governo e as instituições de pesquisa e saúde adotaram políticas públicas de atendimento a essa faixa da população. Mas para isolamento, indiferença e burocracia ainda não se encontrou remédio, denuncia o triste fim da professora Augusta. Seus alunos devem estar comentando a reportagem.
Augusta não fugiu. Esteve nove anos morta em casa
Por Paula Torres de Carvalho (O Público, PT)
Desde 2002 que ninguém ouvia falar dela. Vizinhos e familiares julgavam-na desaparecida e participaram o caso às autoridades. Mas ninguém investigou.
Não fossem as Finanças e provavelmente ainda não se saberia que o cadáver de Augusta Duarte Martinho jazia há nove anos no chão da cozinha do apartamento onde vivia, na Rinchoa, em Rio de Mouro, concelho de Sintra. Mas havia uma dívida por liquidar e a ordem de execução de uma penhora.
Eram quase 17h de terça-feira quando uma agente da PSP da 89.ª esquadra foi chamada para auxiliar a penhora de um apartamento na Praceta das Amoreiras. A casa já tinha sido vendida em leilão. No local estava, além da polícia, um funcionário das Finanças, a nova proprietária do apartamento que o ia visitar pela primeira vez e um serralheiro com a incumbência de arrombar a porta e colocar uma nova fechadura, procedimento banal neste tipo de situações.
Mas, ao contrário do esperado, a porta não abriu totalmente. Havia uma corrente de segurança que o impedia. E chaves ferrugentas na fechadura. Surpresa. Seguida da suspeição de que algo de errado se passava.
No chão da cozinha do apartamento, encontraram o corpo em avançado estado de decomposição de Augusta Duarte Martinho que, no próximo sábado, completaria 96 anos. Os seus animais de estimação, um cão e dois pássaros, estavam também mortos na varanda.
“Ela não se relacionava”
A casa foi entregue à nova proprietária, de 58 anos, que a comprara há três meses por cerca de 30 mil euros num leilão das Finanças e de que apenas conhecia a planta e fotos tiradas do exterior. De concreto, sabe-se apenas que há muitos anos que Augusta Martinho deixou de ser vista e que a última vez que pagou o condomínio foi em Agosto de 2002, há nove anos.
O prédio onde vivia há cerca de 30 anos tem cinco andares com três apartamentos cada, todos habitados. Mas apenas uma das vizinhas do primeiro andar, Aida Martins, se relacionava com Augusta. “Ela vivia só, não se lhe conhecia família e não se relacionava facilmente”, diz, em declarações ao PÚBLICO.
Foi a caixa de correio cheia que lhe chamou a atenção, conta. Mas cartas, só havia da Segurança Social com os vales da sua pensão. “Só sabia que era reformada, ela nunca me disse qual era a sua profissão, mas disseram-me que parece que era educadora de infância.”
Como a vizinha não aparecia, Aida Martins decidiu participar o seu desaparecimento à GNR. O processo ficou com o registo 2274/2002 e NUIPC 1086/07.2 TQSNT. “Disseram-me que não podiam chegar e abrir a porta”, diz Aida Martins. Que ela saiba, “nada foi feito” para investigar o paradeiro de Augusta Martinho.
“Dei um exemplo de cidadania, fiz o que estava ao meu alcance, aqui ninguém se interessou.”
Aida Martins disse à polícia que foi duas vezes à Conservatória do Registo Civil de Sintra para tentar saber se lá existia registo da morte da vizinha, mas nada foi encontrado. Resolveu então procurar alguém da família de Augusta Martinho. E conseguiu encontrar cinco sobrinhos que não se davam com a tia e um primo, Armando Gaspar, de 84 anos. “Acompanhava-a sempre, às compras e ao médico”, diz este último. E conta que a última vez que a viu foi antes de uma viagem até à Beira Alta, onde tem uma casa. “Quando voltei, fui lá a casa, fartei-me de tocar, mas ela não abriu, nunca mais respondeu.”
“Nunca sentimos cheiro”
Resolveu então participar o caso à PSP. O auto de denúncia tem o número 2274/2002. Mas era preciso ordem do tribunal para abrir a porta do apartamento, explicaram-lhe. Por isso, resolveu dar notícia do desaparecimento ao Tribunal de Sintra, conta. “Fui lá 13 vezes, ainda a semana passada por lá passei. Nunca consegui autorização para arrombar a porta”, afirma.
Também Laurinda Cardoso, vizinha do 3.º frente, estranhando a ausência de Augusta Martinho, decidiu participar o seu desaparecimento à Polícia Judiciária. “Ainda cá vieram e telefonaram para cá umas duas vezes, perguntando se a senhora já tinha aparecido, mas mais nada”, diz. “Passou-me várias vezes pela cabeça que poderia estar lá dentro, morta, mas nunca sentimos qualquer cheiro, nunca.”
No último andar, um jovem morador que habita a casa há dois anos diz sempre ter ouvido dizer que a vizinha do andar de baixo “andava de viagem”.
Passaram nove anos. No chão da cozinha. Ninguém se interessou. Ninguém investigou.
Os restos do seu corpo foram ontem transportados para o Instituto de Medicina Legal, para que seja determinada a causa da morte.
Os jornalistas rondam o prédio cinzento dos subúrbios. Há algumas câmaras apontadas para a janela fechada do apartamento onde Augusta Martinho morreu. Ao lado, há quatro outros prédios, à frente mais dois e, no meio, um pátio com uma árvore ao fundo.Ouvem-se os risos de crianças a correr de uma escola próxima e o movimento dos comboios na estação.
Uma moradora atravessa a rua com um cão e protesta contra a presença dos repórteres: “Isto hoje uma pessoa não pode passar aqui, ó caraças.” E há outro homem que murmura: “Alguém que viveu tão só nunca deve ter imaginado uma morte tão pública.”